02 agosto 1988

PAULO TEIXEIRA NO «JL»


SOB A ESTRELA DA CONJUNÇÃO

Paulo Teixeira

Hífen, titulo sugestivo e emblemático escolhido para uma publicação que pretende ser «confluência de diversificados dizeres, significa no étimo grego, «num todo, num só corpo. Hífen procura deste modo, afirmar-se enquanto lugar de irresistível convergência de águas com as mais diversas temperaturas e proveniências.
Esta união exogâmica anunciada no breve editorial do primeiro volume, esta diversidade eleita em afirmação programática, encontra uma enunciação feliz na epígrafe de John Cage ancorada no limiar do número dois e que arriscamos ler da seguinte maneira: «cada poeta tem o seu próprio lugar e nunca ocupa o lugar de outro poeta qualquer; quanto mais forem os poetas, mais divertido é».
De imediato uma aproximação se impõe, alicerçada na «vocação ecuménica» subjacente a este projecto, para nos socorrermos de uma expressão grata a Clara Rocha, nesse eclectismo poético que se consubstancia, textualmente, na busca de «universos singulares de configurações e dimensões diversas», a revistas das décadas de quarenta e cinquenta.
Entre estas, cabe referir Cadernos de Poesia, que se propunha «arquivar a actividade da poesia actual sem dependência de escolas ou grupos literários, estéticas ou doutrinas, fórmulas ou programas»; Aventura, revista dirigida e editada por Ruy Cinatti, que, apesar da orientação católica evidente, elegia como «objecto de admiração todas as expressões de beleza, todas as formas de trabalho do homem, não por um premeditado desejo de proselitismo, mas sim por essas mesmas expressões»; Árvore, onde, não obstante os fins eminentemente sociais a que obedecia, se escrevia que «atentos à multiplicidade do real e à maravilhosa diversidade dos destinos poéticos, a nossa posição é a de total isenção a tudo quanto a poesia der voz e pela poesia se realizar», e, finalmente, Távola Redonda que se definia como publicação de poetas novos, a quem se não pede livrete de nenhum partido nem atestado te nenhuma escola».
É ainda, de Cadernos de Poesla (prefácio à terceira série) uma citação incluída no limiar deste segundo número e onde nos é dado ler que «a Poesia é servida, não serve), princípio recuperado mais tarde em Távola Redonda («ao serviço da Poesia, e nunca a Poesia ao serviço de») e em Sísifo, afirmação que, tendo razão de ser nos anos quarenta e cinquenta enquanto defesa de um ideal estético autónomo face à arte comprometida social e politicamente dos neo-realistas, será porventura supérflua num tempo em que a poesia portuguesa, a despeito da recuperação da referencialidade junto de alguns poetas estreados na década de setenta, é uma poesia por natureza «ensimesmada», que se quer, para transcrever uma frase de Alain Badiou citada por Eduardo Prado Coelho em Os Universos da Crítica, «não o reflexo de um real, mas o real de um reflexo».

Na linha da «Árvore»

Relativamente à última das revistas mencionadas, um paralelo se consente ainda: cotejando os editoriais dos primeiros números de Sísifo e Hífen, constata-se que a poesia é vista em ambas como acontecimento extraordinário, empreendimento ousado. «A poesia, essa aventura), de Sísifo cede lugar nos cadernos que hoje nos toca analisar, a «Hífen é uma aventura», para a componente de risco inerente a esta empresa, que julgaríamos fixada nesse preâmbulo (editar uma revista de poesia em Portugal, conhecidas que são as limitações do meio em termos de mercado potencial de leitores, atenção por parte da crítica, etc.), ser de imediato minimizada quando se afirma: «Tanto mais aventura, porque confluência de diversificados dizeres.» A tónica do risco, da ousadia é curiosamente situada na execução do objectivo primeiro da revista, esse carácter polifónico que ambiciona na prática reunir «num todo, num só corpo» vozes oriundas de sensibilidades diferentes e distintas visões do mundo.
Mais que aventura, a poesia é entendida aqui como «irreprimível necessidade rilkeana», assim possibilitando mais um confronto com o texto de abertura do primeiro fascículo de Árvore, precisamente intitulado «A Necessidade da Poesia». Todavia, naquelas «folhas de poesia», convém lembrá-lo, o âmbito dessa necessidade transbordava, textualmente, do mero «plano da criação» para o da «demanda social».
Inventariando agora os aspectos eventualmente diferenciadores de Hífen relativamente às publicações que temos vindo a enumerar, desde logo uma distinção cumpre ser assinalada: a ausência de crítica e ensaio, que ocupavam uma posição destacada em todas elas, curiosamente justificada neste segundo número, com o auxílio a uma citação de Agustina Bessa-Luís: «Entre a obra de arte e a crítica há um abismo, porque a crítica é inteligência, e a obra é, mais ou menos esquivado ou completado, o impossível.» Não se inclui do mesmo modo até ao momento, colaboração proveniente de outros universos de língua portuguesa, divulgação de autores estrangeiros ou inéditos de poetas já desaparecidos, facetas a merecerem atenção especial nomeadamente em Presença, Revista de Portugal, Cadernos de Poesia, Sísifo, Árvore e Nova.
Diferentemente da «autenticidade», definida como critério único de selecção ao mesmo tempo em Árvore e Távola Redonda, privilegia-se em Hífen «o viço de uma visão inaudita e inicial», é dizer o carácter essencialmente singular dos textos a publicar.

«Consagrados» e promoção dos mais jovens


Depois de caracterizado o seu programa e feito o confronto com outras publicações do género, compete-me lançar um olhar ao seu conteúdo com o propósito de confirmar essa intenção, patente no primeiro número, de dar a conhecer «lado a lado poemas inéditos de grandes nomes da nossa poesia e de outras vozes desconhecidas e a conhecer».
Facilmente se verifica, na sequência deste manifesto, que Hífen logrou reunir, em apenas dois números, um plantel de autores notável para qualquer publicação desta natureza. Neles contam-se nomes fundamentais no quadro da poesia contemporânea como, numa ordem necessariamente anárquica, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner Andresen, Fernando Guimarães, Fernando Echevarria, Natália Correia, Fiama Hasse Pais Brandão, Mário Cláudio, Maria Teresa Horta, Albano Martins e, concomitantemente, autores com um historial único de participação em revistas literárias. Entre estes cabe referir António Ramos Rosa, provavelmente o poeta vivo a ter colaborado num maior número de publicações literárias, director de Árvore, responsável pela orientação em Cassiopeia e coordenador em Cadernos do Meio Dia; José Blanc de Portugal, organizador de Cadernos de Poesia e membro do corpo redactorial de Aventura; Egito Gonçalves, director de Notícias do Bloqueio e editor da Serpente de 1951; e Pedro Támen, responsável pela orientação em Anteu.
Ao lado destes surgem poetas lançados em livro já nesta década (Inês Lourenço, Luís Adriano Carlos, Jorge de Sousa Braga, Amadeu Baptista, Carlos Alberto Braga, Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Carlos Poças Falcão, António de Almeida Mattos, Jorge Velhote, José Manuel Teixeira da Silva), bem como estreantes absolutos, autores sem qualquer obra publicada (Maria das Graças Mano, Júlio Cardoso Pereira, Pedro Ribeiro, António Sá, Álvaro Holstein Ferreira).
Hífen, emergindo da aridez destes anos oitenta, de ficção inflacionária, vem preencher pois uma lacuna essencial na divulgação da poesia em produção neste país, e, em particular, na promoção dos mais jovens autores.
Para isso tem a ajudála uma muito cuidada apresentação gráfica, com belíssimas capas: de autoria de Tiago Manuel e José Rodrigues, papel de qualidade e páginas de cores sugestivas.
A terminar, não queremos deixar de expressar naturalmente o desejo de que esta mistura de águas, que em Outubro teve início, resulte numa fecundação duradoura e bem sucedida. E que à multiplicidade de vozes, tons e discursos que Hífen se propõe incluir não falte nunca essa «atitude de lucidez, compreensão e independência» adoptada como único e rigoroso critério selectivo pelos organizadores de Cadernos de Poesia, que aqui, por mais uma vez, serviu nos seus propósitos, de paralelo a esta revista.

Jornal de Letras, 2.8.1988