01 abril 1989

hífen 4




VIAGENS


Desde o seu 1.º número, referente a Março 87 / Outubro 88, HÍFEN - cadernos semestrais de poesia -escolhe o lugar inseguro e aparentemente invertebrado de «confluência de diversificados dizeres», conforme assinala no seu texto de estreia. Lugar este fascinantemente provisório e dinamitável, pois é sabido como a associação de coisas diversificadas e inéditas «num todo, num só corpo» - convocação etimológica do vocábulo «hífen» - é laboriosa e sujeita a incontroláveis destinações, num modo de construção que sempre cria uma geografia final inesperada e surpreendente... E o inesperado e o surpreendente são a escada de incêndio salvadora do modo «oficial» e «industrial» de produzir, modo este que frequentemente faz desembocar os seus produtos em maçadores necrotérios de chateza bem conceituada.
HÍFEN, enquanto des-industrializante e des-oficializante da divulgação da poesia portuguesa actual, insere-se nalgumas fracturas gozosamente adoptadas:
Situa-se numa posição de esbatimento geracional, não proclamando «percursores» nem inventariando «epígonos», mas privilegiando a comunicação estética imediata, a força emotiva do texto, em desfavor de preâmbulos e didactismos abusivos e menorizantes ou currículos tranquilizadores. É sabido e proclamado que a melhor explicação e/ou fruição do texto estará porventura nele mesmo. HÍFEN reserva-se o direito de assim entender. E a esperança de que os seus leitores assim o desejem.
Subordinando-se apenas à valia estética patenteada nos textos dos autores que inclui, HÍFEN obstina-se na publicação de poetas recém-surgidos ou estreantes ao lado de grandes nomes da poesia portuguesa actual. Afortunadamente há recém-surgidos que já são grandes nomes. E há grandes nomes que são galáxias inapagáveis. Entende igualmente prosseguir a publicação de inéditos de grandes poetas que possam ficar semi-obscurecidos por essas galáxias ou por assimetrias várias de divulgação.
Continua a incluir poetas ditos «bissextos», reconhecendo que a parcimónia produtiva não é directamente proporcional ao talento, mas muitas vezes fruto de invejável auto-crítica e pejo na publicação de textos não suficientemente amadurecidos ou falhos de invenção. Até porque o trabalho poético não deverá ser medido aos palmos, haja em vista casos como o de Camilo Pessanha, Cesário Verde ou até Mário de Sá-Carneiro.
HÍFEN espera ainda, por mais alguns números, continuar a inserir-se livremente naquela fissura, talvez impensável nos tempos de «marketing» que vão correndo, de uma publicação à revelia de indústrias e controles culturais e outros, tendo contudo como marca específica uma realização cuidada, amorosamente insólita e apetecível.
Prevê a publicação de diversos números temáticos, sendo o n.º3, imediatamente anterior, intitulado «a poesia/as outras artes», dedicado à confluência de códigos estéticos. O que ora se apresenta privilegia a temática da «VIAGEM», inquietante e indelével lugar na tradição poética portuguesa.

Maio/89
I.L.


HÍFEN - CADERNOS SEMESTRAIS DE POESIA
N.º4 - ABRIL 1989
(«Viagens» - número temático)

Desenho da capa: Alberto Carneiro, da série «OS CAMINHOS DA MONTANHA», 1983, grafite sobre papel, 350x225 mm
Arranjo gráfico: Nuno Lourenço

Colaboração: Al Berto, António Barbedo, Eduarda Chiote, Emanuel Jorge Botelho, Eduardo Pitta, Fernando Echevarría, Fernando Luís, Helder Macedo, Helga Moreira, José Alberto Mar, João Camilo, João Luís Barreto Guimarães, Luís Miguel Nava, Mário Cláudio, Natália Correia, Paulo Teixeira, Sophia de Mello Breyner Andresen.


Direcção: Inês Lourenço.

AL BERTO



Al Berto é o pseudónimo literário de Alberto Raposo Pidwell Tavares. Nasceu em Coimbra, a 11 de Janeiro de 1948, e viveu parte da sua infância e adolescência em Sines. Devido ao seu dom para a pintura, a família decide enviá-lo para a Escola António Arroio, em Lisboa. Frequenta o Curso de Formação Artística do SNBA. Em 1967 saiu de Portugal para residir em Bruxelas durante vários anos. Em 1969, com alguns amigos artistas plásticos, fotógrafos e escritores funda a associação internacional Monfaucon Research Center. Foi a partir desta viragem da sua vida que Al Berto decidiu abandonar a pintura e assumir-se definitivamente como "autor de textos literários". Regressa a Portugal a 17 de Novembro de 1974 e cria uma comunidade na antiga mansão senhorial da família que mais tarde será chamada de "Palácio". Constitui-se como editor e publica obras de alguns de seus amigos. Em 1976 abre uma livraria/editora em Sines, o que se tornará numa catástrofe económica devido à selecção dos livros para venda demasiado criteriosa que ninguém conhece e ninguém compra. Em 1977 fecha a livraria e regressa a Lisboa. Publica À Procura do Vento num Jardim d’Agosto, Collecção Subúrbios nº 2, A. Pidwell, Editor, Lisboa. Em 1981 entra para a Câmara Municipal de Sines como animador cultural, actividade da qual se demite passados cinco anos. Em 1988, recebeu o prémio Pen Club de Poesia pela publicação de O Medo. Este título reuniu num único livro (posteriormente ampliado e reeditado) a obra poética de Al Berto. Al Berto morre de linfoma em Lisboa a 13 de Junho de 1997.»

regressa do túmulo dos mares do sul
enterra os dedos na penumbra que separa o dia
da noite das cidades recorda o restolhar das serpentes
a seiva lívida do loureiro estremecendo ao sentir
o rosto da criança que foste contra o tronco

na tua memória já não existem paisagens de ossos
nem pássaros nem punhais de luz dentro da insónia
a criança que em ti morreu crescendo
usou sapatos com atacadores e gravata
pela primeira vez foi ao cinema sozinha
com olhar turvo de melancolia anda por aí
à procura de quem a queira

in HÍFEN 4, Abr/Set 89.

Colaborou no número 4 de HÍFEN.