04 novembro 1989

DESTAQUE NO «EXPRESSO»


AS REVISTAS E AS SUAS SOMBRAS
António Guerreiro

AS ESCADAS NÃO TÊM DEGRAUS
HÍFEN - CADERNOS SEMESTRAIS DE POESIA -3


O mínimo que se pode dizer, hoje, do nascimento de uma revista é que se trata de uma extravagante pretensão. Houve tempo, em que assim não era: os focos de interesse e de irradiação da vida literária desenvolviam-se em torno de revistas que abriam, no mundo literário, espaços de inclusões e de exclusões. A revista literária era, na maior parte dos casos, um lugar de experimentação e de defesa de um território definido por valores estéticos. E aí temos, para nos limitarmos ao nosso século, projectos em forma de revista - a «Presença», por exemplo - e revistas em forma de projéctil - como o «Orfeu».
Mas a vida literária, hoje, é diferente. Já não há «ismos»; já não há programas colectivos; já ninguém precisa de defender, nos mesmos moldes, a sua produção literária contra quem quer que seja. Em suma: já não há guerras que impliquem a frontalidade combativa de uma revista - há apenas inimizades miudinhas feitas à imagem de um qualquer grupo sócio-profissional. Antes - digamos: no tempo das vanguardas - a revista podia ter um carácter transgressivo, quase trágico (como é precisamente o caso do «Orfeu»), hoje, quando muito, apenas pode haver errância porque não há uma lei a transgredir. Também na literatura, a disseminação do poder deslocou a lei do seu lugar central e irradiante. Aquilo que sustenta hoje uma revista já não é qualquer espécie de solidez programática.
Num horizonte deste tipo, não diria que as revistas literárias se tornaram inúteis - mas tornaram-se, pelo menos, intransitivas, objectos anómalos que não estão suspensos de qualquer espécie de dialéctica, que nascem mais de cumplicidades afectivas do que de afinidades literárias e que irrompem como um puro «nonsense» de que o exemplo mais ilustrativo é um título como As Escadas não têm Degraus.
Por isso não se justifica mais do que uma lacónica nota de abertura onde Joaquim Manuel Magalhães (que, como João Miguel Fernandes Jorge e António M. Feijó constituem a direcção desta «publicação não periódica» nos vem dizer que «com todos os outros colaboradores deste primeiro volume (sem nenhum programa de intenções, pois tais coisas nos são alheias), procuramos um lugar de afirmação inquieta do nosso entendimento cultural. E também um lugar de repouso, o dos próprios textos que formos publicando, que poderão, aos poucos e sobretudo, mostrar aquilo a que determinadas pessoas foram alheias através das suas claras intenções». Ou seja: se alguma intenção existe nesta revista (ou «publicação não periódica») é a de contrariar as «claras intenções» alheias. E assim ficamos a saber que, apesar de tudo, a nossa vida literária, sem o empolgamento dos grandes lances polémicos, ainda é habitada por algum dramatismo que tem a configuração indefinida de um teatro de sombras. Porque, não tenhamos dúvidas, se o «inimigo» não é hoje facilmente localizável num lugar fixo, isso não significa que ele não exista de uma forma mais ou menos disseminada e anónima. As guerras acabaram mas algumas tensões permanecem. Talvez esta dialéctica «debole» seja a única possível na nossa vida literária de hoje. E Fernando Luís, num pequeno artigo sobre um livro de Gil de Carvalho, dirá: «Quando nos jornais se promovem coisitas que não passam de charadas, se incensam artes de humor caseiro de onde toda a inteligência e criatividade verbais desertaram, é bom confrontar-nos com objectos assim para, no mínimo, não nos sentirmos míopes.» Evidentemente, formuladas as coisas deste modo vago e indefinido, há sempre lugar para pensarmos até que ponto é que vai a convicção com que se diz isto, ou se não estamos perante um expediente retórico que serve apenas para engendrar estilo. Porque há quem escreva melhor (e há mesmo quem só consiga escrever) se projecta no seu horizonte um alvo, mesmo que abstracto, contra o qual dirigir as suas palavras. E num outro artigo sobre o último livro de António Franco Alexandre, Joaquim Manuel Magalhães insurge-se contra «os faladores actuais sobre a poesia» que, por tudo e por nada, utilizam o qualificativo «o maior» «para referir o poeta de quem gostam e sobre quem num dado momento se prontificam a falar». J.M.M. detecta aqui um dos maiores vícios do mundo literário (o nosso, mas talvez também todos os outros) que é o de fazer da literatura uma espécie de olimpíada com os seus vencedores e derrotados, erguidos sobre pódios hierarquicamente alinhados. E J.M.M. observa certeiramente: «A existência de poetas maiores não transforma nenhum deles no maior. Pobre duma literatura que soubesse qual era o seu maior poeta.» Mas se não há a possibilidade nem a conveniência em detectar o maior, já os menores são facilmente identificáveis, o que não deixa de ser algo falacioso, sobretudo quando para isso se lança mão de uma metáfora da disputa guerreira: «António Franco Alexandre (...) é um poeta que escreve em português. Inúmeros há que tentam sê-lo, escrevendo linhas do tamanho mais ou menos regular na mesma língua, mas não iria eu chamar-lhes poetas. Quando muito seriam mais um nome inscrito na Sociedade Portuguesa de Autores ou na Associação Portuguesa de Escritores ou promovido por qualquer capanga de uma clique em exercício de ringue.» E não menos falacioso é falar-se no «desbordado coro de encómios pessoanos» (J.M.M.) quando hoje existe um não menor e não menos «desbordado coro» de anti-encómios pessoanos. A dialéctica tem destas armadilhas: mal nos descuidamos, já estamos a entrar na lógica daquilo a que nos opomos.

As Escadas não têm Degraus é uma revista heteróclita que cobre áreas de ensaio (um interessante artigo de António Cerveira Pinto sobre a situação da arte neste fim de milénio e outro, não menos interessante de João Pinharanda sobre «As histórias da fotografia»), de recensões críticas a livros de poesia (Joaquim Manuel Magalhães e Fernando Luís - que escrevem, o primeiro sobre Franco Alexandre e um poeta quase desconhecido chamado José António Almeida, o segundo sobre Assis Pacheco e Gil de Carvalho) e a romances (Fernando Pinto do Amaral e António M. Feijó escrevem sobre V. Ferreira e Agustina), artigos sobre pintura (de João Miguel Fernandes Jorge), um guião de um filme de Joaquim Pinto e também um curioso (e paradoxal, pelo lugar em que se encontra) estudo de Paulo Lobato Faria e Pedro Afonso Branco sobre «Problemas Jurídicos da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida». E há ainda inéditos de um poeta ainda pouco editado, Jorge Fazenda Lourenço, que, não sendo propriamente entusiasmantes, merecem toda a atenção. Mas talvez o núcleo forte da revista seja uma selecção de poemas de um dos grandes poetas espanhóis ainda vivos - o catalão Jaime Gil e Biedma - que, à parte alguns poemas que dele foram traduzidos na antologia da poesia espanhola de José Bento, continua quase desconhecido entre nós. Joaquim Manuel Magalhães é o autor desta selecção, e manteve-os sem serem traduzidos, o que parece ser uma óptima solução (afinal, qualquer português que lê poesia está em condições de ler castelhano).
Menos pertinentes serão talvez três «Flashes» - texto em prosa - mais ou menos inócuos de Mécia de Sena, num registo autobiográfico e mais ou menos indigente a provar que não se é escritor por afinidades conjugais; ou os três contos de José Dinis Fidalgo que não passam de um bordado mais ou menos gratuito de palavras, nem sempre alinhadas por critérios de bom gosto. Um conto que começa desta maneira: «Desde quando não sei, o João gostava de me levar por lugares perdidos a brindar os nossos olhos que, reconheçamo-lo, são os dentes maiores da imaginação» não prenuncia, de facto, nada de bom.
Uma outra revista que nos chega do Porto e já vai no seu terceiro número (a sua periodicidade é semestral) é Hífen - cadernos semestrais de poesia. Dirigida por Inês Lourenço, esta é uma revista exclusivamente de poesia. Não é heteróclita mas ecléctica. Nela cabem nomes consagrados, (como Ramos Rosa, Gastão Cruz, Eugénio de Andrade, Nuno Júdice, Luís Miguel Nava e outros) e nomes quase desconhecidos como Rosa Alice Branco ou José Alberto Quaresma. Graficamente bem cuidada (por vezes, talvez, excessivamente cuidada...) não há propriamente neste terceiro número da Hífen grandes revelações. Vale a pena ser lida pelo conjunto de bons poetas que aglomera, mas não nos permite detectar nomes prometedores, pelo menos por agora. A não ser, talvez, Jorge Figueira, que é, entre os desconhecidos, o que se revela mais interessante. Hífen é sinal de pacífica justaposição, uma espécie de comunidade de amigos da poesia para quem esse traço comum basta.
(Livros Cotovia, Lisboa, Janeiro de 1989, 224 págs., 1200$00); ed. autor, Outubro de 1988,60 págs., 500$00)