01 abril 1992

hífen 7


DIAS INÚTEIS

"Parce qu'elles sont les bastions de la cause poétique, qu'elles endossent le
risque de la nouveauté, les revues, celles qui s'aventurent dans les labyrinthes
de la création verbale, occupent une situation capitale dans l'espace de la
littérature. On sait avec Paul Valéry qu'elles sont 'de véritables laboratoires
pour les lettres' et Roland Barthes postulait que les revues constituent des
'moments significatifs de l'histoire'." - Guy Darol (1)

"A minha poesia é, em primeira linha, quotidiana, e refere-se imediatamente
a um certo espaço; mas vê esse dia e esse espaço 'à transparência', como diria
Sophia de Mello Breyner Andresen, e eles funcionam como membo expresso
da metáfora que esconde um outro dia e um outro espaço." - Ruy Belo (2)

"A poesia, tal como a entendo, é inútil.
Para que terei então chegado aqui?"
(...) - Nuno Júdice (3)
Na procura de uma temática integradora para o presente número, surgiu a ideia de privilegiar a poesia do quotidiano, da atenção às coisas aparentemente minimais, duma suposta imediatez, mas que escondem quase sempre os inquietantes cromossomas dos grandes itinerários. Assim se intitula esta colectânea, DIAS INÚTEIS por simetria com os "dias úteis" do hebdomadário da subsitência (ou sub-existência), mas também na equidistância da ideia de inutilidade como liberdade de não estar de serviço, de não estar ao serviço, da gratuitidade edenicamente disponível para surpreendentes revisitas e olhares.
No início deste caderno surgem os "Pequenos Poemas Mentais" de Irene Lisboa, ainda inéditos em livro, e que aqui se reproduzem com a grafia original, conforme apareceram na Revista de Portugal, n.º 3, de Abril de 1938, segundo a elucidativa nota de Paula Morão que se lhes segue. Dada a coincidência de, este ano, se perfazer, em Dezembro, um século sobre a sua data de nascimento, entendemos aqui realçar a singularidade da sua escrita, essa estratégia de ficção diarística, num tempo diluído pela memória, num envolvimento com o real, conferindo dignidade poética ao quase comezinho, a desestabilizar as poses enfáticas, na procura de um género novo e autónomo. Ela própria nos descreve esta atitude em Solidão (4): "Este meu escrever sobre nadas, creio que até me chega a dar uma absoluta indiferença pelas categorias literárias! Me desinteressa de todo o rang e classe... Me inquina cada vez mais de uma corajosa e perversa paixão de liberdade".
A ela igualmente se refere Carlos de Oliveira (5), assinalando: "a escrita seca, pura, duma naturalidade pouco 'literária'; a planitude simulada das falas que pareciam registadas por um gravador; (...) o deserto breve do quotidiano; João Falco e o prosaísmo da poesia; tudo aquilo, enfim, que viria a fazer dela um precursor e um mestre de certos escritores actuais".
A vertente "prosaísta" da poesia de I. L. foi também objecto da análise de Fernando Guimarães (6), que escreve: "E exigir que se leia só o que os poemas dizem é ter já alcançado aquele momento que a linguagem expressiva pode atingir quando, ao furtar-se a um vago ideal que, na evolução da literatura, provinha de algumas concepções ligadas a um dos progenitores da retórica, Aristóteles, se recusa a auxiliar o leitor. Lembremo-nos que, acompanhando uma série de poemas a que deu o nome de Poemas Mentais, aparece esta epígrafe bem significativa e talvez adequada para caracterizar qualquer encenação realizada por um dramaturgo e poeta dos nossos dias. Brecht, que igualmente não aderiu a uma estética aristotélica e se não quis comprometer no auxílio prestado a um espectador que deveria descobrir por si as intenções e o significado de toda a obra - 'mental: nada ou quase nada sentimental'..."
Nesta edição de DIAS INÚTEIS pretendeu-se assim publicar poemas inéditos (7) em português e cuidadas traduções de poetas de outras línguas, textos que, embora encenando o contacto com momentos pragmáticos ou quase mecânicos da actividade quotidiana, celebrando pequenos nadas aparentes, nos confirmam in fine que devem ser lidos afastando ilusões de espontaneísmo e ingenuidade de imediatismo de construção e expressão. Num interessante capítulo (8), intitulado "A questão da Poesia", refere-nos Joaquim Manuel Magalhães: "Quando se escreve, o mundo fica suspenso. Mesmo quando é do próprio mundo que se fala, esse mundo é, no acto de escrever, um mundo nas palavras, um mundo na memória, um mundo nas emoções. O mundo do quotidiano, o mundo da experiência ou o mundo de graus mais elevados do conhecimento encontram-se a uma distância, suspensos por e reduzidos à atenção que os 'escreve'."
Encerrando esta nota introdutória de DIAS INÚTEIS gostamos de reafirmar que o poema não é um utensílio, mas antes um complexo de vários níveis de caleidoscópicas intenções, por muito simples que o seu efeito possa parecer. A palavra do poeta é uma palavra errante que ruma até à exigência original de um constante devir, ao opor-se a toda a morada, a toda a fixação, a um enraizamento que seria repouso.

I.L.
Abril, 1992

1) Guy Darol, "Le tour de la poésie en revues", Magazine Littéraire, n.º 247, Paris, 1987, pp. 59-62.
2) Ruy Belo, "Entrevista 1", Obra Poética de Ruy Belo, vol. 3, Lisboa, Editorial Presença, 1984, p. 17.
3) Nuno Júdice, "Vaga Lição. Fortuna", Nos Braços da Exígua Luz, Obra Poética (1972-1985), Lisboa, Quetzal Editores, 1991, p. 198.
4) Irene Lisboa, Solidão, 3.ª ed., Lisboa, Círculo de Leitores, s.d, p. 100.
5) Carlos de Oliveira, "À Espera de Leitores", O Aprendiz de Feiticeiro, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1971, p. 223.
6) Fernando Guimarães, "A Poesia Mental de Irene Lisboa", Linguagem e Ideologia, Porto, Editorial Inova, 1972, p. 153.
7) Com excepção dos de Irene Lisboa, publicados na Revista de Portugal, já referida.
8) Joaquim Manuel Magalhães, "A Questão da Poesia", Dylan Thomas, consequências da literatura e do real na sua poesia, Lisboa, Assírio e Alvim, 1982, p. 39.


HÍFEN - CADERNOS SEMESTRAIS DE POESIA
N.º 13 - DEZEMBRO 1999
(«Dias Inúteis» - número temático)

Desenho da contra-capa - Carlos Henrique
Capa e arranjo gráfico - Jorge Figueira

Colaboração: Irene Lisboa (nota explicativa de Paula Morão), Alberto Pimenta, Amadeu Baptista, Armando Silva Carvalho, Egito Gonçalves, Eugénio de Andrade, Francisco José Viegas, Gil de Carvalho, Helga Moreira, João Camilo, Jorge Fazenda Lourenço, Jorge Figueira, Jorge de Sousa Braga, José Bento, José Emílio-Nelson, Manuel António Pina, Ildásio Tavares, José António Ramos Sucre/José Bento, Roberto Juarroz/Arnaldo Saraiva, Christoph Meckel/João Barrento, Karin Klwus/João Barrento, Ralf Thenior/João Barrento, Rolf Dieter Brinkmann/João Barrento, Sarah Kirsch/Maria Teresa Dias Furtado.

Direcção - Inês Lourenço.