15 dezembro 1997

O SOM & O SENTIDO

Eduardo Pitta

Uma revista de poesia por inteiro dedicada a novos autores é sempre um acontecimento. É o que acontece com o n.º 10 de Hífen - Anos Noventa (alguns poetas) -, onde se coligem poemas de Ana Luísa Amaral, Eva Ruivo, Firmino Mendes, João Luís Barreto Guimarães, Luís Quintais, Rui Penote Coias, Rui Pires Cabral e Sérgio Pereira. Que afinidades existem entre eles? Poucas. João Luís Barreto Guimarães, por exemplo, é o único que se estreou antes de 1990, e é também o único que já havia colaborado na revista. Os outros publicam pela primeira vez em Hífen, e as afinidades de discurso são mínimas. Vejamos como é. Em Ana Luísa Amaral (n. 1956), autora de quatro livros e professora de literatura inglesa, sobreleva o registo fotográfico: «O peso inexcedível da gravura/ amarela de tempo,/ uma inocência leve de cordeiro/ por tosquiar/ e lento/ (como nele seriam os rebanhos/ e as flores do prado azul,/ muito serenas,/ sem qualquer explosão)/ / O cajado e a pele por simbólica mão,/ e guardando,/ / guardando lentamente: guardando,/ eu te fizesse assim:/ com um amor tão grande anterior/ ao amor./ / O perfume embalado/ por mim/ / e pela noite». Apesar dos diferentes níveis de tensão, a intriga flui com desenvoltura, presume-se que em consequência do largo convívio da autora com as tradições anglo-saxónicas. Rui Penote Cóias (n. 1966), sem livro publicado, aproveita bem as lições de T. S. Eliot, e opta pelo monólogo dramático: «Se quiseres que eu me perca, buscarei outra ilha./ Esperarei a morte diante dos olhos,/ o milhafre junto à ravina de crisântemos […] Não te esqueças:/ aprendi um dia que deus nos traz um sono/ leve que nos cega». O jogo das relações paradigmáticas, nimbado de algum hermetismo, empresta aos seus poemas (gratificante descoberta) uma tonalidade exemplar. Eva Ruivo (n. 1963), autora de Rosa de Jericó (1994), dá voz a uma desenvolta sensibilidade expressionista: «Os meus domínios não são os do movimento/ browniano dos rins ou o aturdimento/ neurótico da mão, Isolda sofreu menos./ / Espere... Não fale… - Farejo pegada a folhagem/ rasteira, um tronco fendido há momentos/ à passagem dum animal de pêlo, é a canção/ vegetal que se expande na clareira, cheiro até ao centro». Rui Pires Cabra (n. 1967) domina a estrutura narrativa com razoável segurança: «Peluches e retratos criavam uma nódoa/ no ar à sua volta, o tempo chupava os olhos/ das bonecas como açúcar./ / Eu seguia aquelas ruas muito depois/ das janelas, pelos toldos que se abriam/ contra o volume da noite». A prosódia é outra das suas preocupações. Ao contrário do que acontece com Firmino Mendes (n. 1949) e Sérgio Pereira (n. 1958), em cujos poemas esse aspecto é descurado. Em ambos, o prosaísmo é de regra. Mais contido no primeiro (a linguagem de Firmino Mendes oscila quase sempre entre o referente central e a ressonância conatural), grandiloquente no segundo (as colectâneas de Sérgio Pereira não desmentem esta asserção). Nos poemas de Luís Quintais (n. 1968) encontramos composições minimalistas - «Colunas altas/ Electricidade/ Estações/ / abandonadas nos limites do plasma», especulativas - «Conheces aquelas telas de Rothko/ em que as leis da percepção se esboroam?», e torrenciais - «Não fosse a minha impossibilidade/ em escutar-te, distraído pelo fúnebre espectáculo/ de uma esperança que acaba no preciso momento/ em que o último dos homens desaparece no horizonte negro/ das árvores altas, e talvez ousasse atribuir-te/ esta opacidade [...]». A tonalidade pós-moderna, naquilo que ela pode ter de superficial ou paródico, ajusta-se aos poemas em rosa, que, à maneira de um diário João Luís Barreto Guimarães (n. 1967) escolheu para este número. A propósito dos sonetos de um livro do autor, Nuno Júdice fala de «uma expressão quase inteiramente discursiva e antilírica» (cf. Viagem por Um Século de Literatura Portuguesa, 1997, p. 95). Então deve ser isso. É claro que Hífen 10 podia ser outra coisa. Tudo pode ser outra coisa. Mas, como está - oito poetas, nascidos entre 1949 e 1968, com uma média de três livros publicados por autor, à excepção de um estreante -, não deixa de constituir uma excelente oportunidade para tomar o pulso à mais recente poesia portuguesa. Falta gente? Falta sempre gente. Não obstante, o mérito não é negligenciável e deve ser creditado a Inês Lourenço, a editora.