11 julho 1999

A POESIA DE LUIZA NETO JORGE


Ramiro Teixeira

Eis um número mais da revista "Hífen", o qual se apresenta sob o signo de quatro poéticas - Irene Lisboa, Florbela Espanca, Natália Correia e Luiza Neto Jorge -as quais, por sua vez, são objecto de outras tantas apreciações literárias, a cargo de Paula Morão, Eunice Cabral, Maria de Fátima Marinho e de Rosa Maria Martelo, textos estes e intenção programática antecedidos de um poema inédito de Ana Luísa Amaral, o qual, dir-se-ia, dá o mote para este projecto: “Chegadas de paisagens tão diferentes, / estrangeiras entre si, / criaram esse sol de uma outra / cor, de musa congelada / e surreal, de páginas demais / ou compridas, / linhas intercaladas e buracos / nas linhas…”.
Razões compreensíveis de espaço impedem-se de tratar estas quatro poéticas e consequentes recensões do mesmo modo, razão pela qual, tendo de eleger apenas uma, para a acção mediadora que justifique este texto, me decidi por Luiza Neto Jorge, atento a que, esta poeta, ao contrário das demais, foi uma criadora de obra inacabada ou interrompida.
Talvez haja algum exagero nesta afirmação ou conceito, mas o facto é que a obra de L.N.J foi tão espaçada e reduzida que coube por inteiro no volume "Poesia", editado em 1993. Não obstante, qualquer dos títulos da autora se caracterizou, desde logo, pelo sentido de mudança que comportaram. Pela exemplaridade do processo criativo, que teve como primeiro embate o confronto com a tradição surrealista, situação a que não deve ter sido estranha a outra condição literária de L.N.J., ou seja, a sua outra faceta de tradutora de obras de André Breton, Raymund Roussel, Boris Vian, Verlaine, Celine, etc.
O conhecimento profundo destes autores permitiu-lhe, decerto, adentro da prática so surreal, exprimir uma racionalidade que muito tem que ver com a irracionalidade comportamental do ser humano, e o da escrita em si, quer pelo primado dos códigos morais que condicionam o comportamental social, quer pela imposição gramatical que se sobrepõe a toda a prática discursiva no plano da escrita.
Ora, a (i)racionalidade, no caso do comportamento humano, exprime-se através da sexualidade, da tenacidade erótica e sensual que o atravessa, entre exaltantes momentos de prazer a que todo o controlo de ser sucumbe. A reprodução desta irracionalidade no plano da escrita, do poema, no comum dos casos, é sublimada pela exaltação lírica e sentimental, ou seja, pelas mágoas e alegrias do amor de alguém por alguém, as quais, dir-se-ia, são de natureza mais espiritual do que física.
Não assim, porém. no caso de L.N.J. Não porque ela rebaixe estes sentimentos ao rés do físico; na verdade, até procede de forma inversa, isto é, determina o corpo como factor subversor da moral e da gramática, de onde resulta que o corpo passa a ser, verdadeiramente, o tema fulcral dos sentidos e dos poderes visionários das palavras, logo, a sublimação por excelência.
Atente-se, por ex., ao poema "O Corpo Insurrecto” (Terra Move, 1966), de que apenas reproduzo estes versos: "Sendo com o seu ouro, aurífero, / o corpo é insurrecto. / Consome-se, combustível, / no sexo, boca e recto. (…) mais talhado é o golpe / quando o põem em prática / com desassossego na respiração / e o sossego cru de quem, / tendo o corpo nu, / a carne ardida, / lhe pede o ladrão / a bolsa ou a vida.”
Atenta a esta vertente, diz-nos Rosa Maria Martelo que na poesia de L.N.J., “resistir (pela provocação da sexualidade assumida) é recuperar uma unidade que a sociedade alienou, é o desactivar dicotomias como as que opõem o corpo e o espírito, o sonho e a realidade, o real e o imaginário… de forma a minar um edifício social repressivo”.
Eu não sei se, efectivamente, a luta pela expressão em L.N.J. passa profunda ou tangencialmente pelo social repressivo, ou se, ao contrário, deste confronto se serviu a poetisa para se assumir de maneira diferente. É matéria que nos levaria longe e que ficará para outra ocasião. Mais importante, me parece, é haver uma outra variante a ter em conta na poesia de L.N.J., e que sobressai particularmente em “Lume” (postumamente publicado em 1989), onde a autora descreve o seu próprio processo de envelhecimento, com o mesmo tipo de protagonismo e de aventura com que celebrara o erotismo, acabando por fundir, em identidades opostas, o mesmo tipo de recusa a uma feminilidade/humanidade passivas.
SE7E, Domingo, 11 de Julho de 1999