07 julho 1992

A CRÍTICA (IM)POSSÍVEL DE FERNANDO GUIMARÃES

Poesia e diálogo

A POESIA É DIÁLOGO? AS RESPOSTAS A ESTA pergunta podem viver de muitos equívocos. Um deles resultaria de se procurar na poesia uma mensagem, um conjunto de enunciados resolúveis mediante um enquadramento que seria o que resu1tava de uma decifração efectiva e tendencialmente unívoca de sentidos. Esta decifração consistia, portanto, em encontrar enunciados substitutivos; a mensagem era, afinal, uma forma de substituição. Algumas poéticas apostaram numa opção deste tipo e, relativa mente próximo de nós, poderíamos encontrar no Neo-Realismo - sobretudo se considerarmos as suas primeiras manifestações -uma certa disponibilidade para abraçar uma concepção desta índole.
Mas o diálogo em poesia pode ter outras implicações. Esse diálogo pode estabelecer-se entre textos. Agora já não se tem em vista a explicitação do sentido próprio do poema mas, antes, o sentido do seu relacionamento com outros textos, com um envolvimento cultural, enfim, com o chamado «efeito de eco» que pressupõe uma multiplicidade de referências. A celebrada noção de intertextualidade, a não menos celebrada concepção de obra de arte considerada a partir de um princípio dialógico são aspectos a ter em conta quando se consideram os tais efeitos de eco, as tais séries de textos que se tomam recorrentes. Tudo isto compromete a linearidade do texto. Este apresenta-se, antes, como uma espécie de rosácea: a sua leitura pressupõe a necessidade de se estar atento a intersecções, convergências, pontos de fuga, etc. Num artigo publicado em 1976 - isto é, há cerca de quinze anos - Laurent Jenny (Poétique, n.º 27, p. 261) admitia que se verificava, relativamente à poética moderna, uma certa dificuldade ou morosidade em se deixar sensibilizar pela intertextualidade. E admitia que se tratava de «un défaut de jeunesse: l’obsession de l'immanence». Tal obsessão nasce da aceitação de uma realidade literária que, manifestando-se através da sua própria linguagem, pode ocultar as qualidades diferenciais que a põem em relação com uma essencial diversidade textual e cultural. Haveria um autotelismo – foi, com efeito, esta uma das direcções características da poética da modernidade -, a qual decorria de uma referência ao que seria a efectiva realidade da literatura, a sua linguagem. Ora se existe um sistema, da linguagem, fora do qual a obra é impossível, também importa, paralelamente, ter em conta a existência de uma série ou de uma espécie de sistema literários sem os quais essa obra acaba por se tornar incompreensível.
Consideremos, por exemplo, o «Ulisses», de James Joyce (com as extensões que nele existem relativamente aos poemas homéricos), as «Elegias de Duíno», de Rilke (com a sua ocasional, mas importante, referência à pintura de Picasso), a obra assinada por Álvaro de Campos (com a sua referência ao universo poético de Walt Whitman), etc. E hoje, com uma certa predilecção manifesta pelo uso da citação, da montagem, da paródia, etc., tudo isto ganha múltiplas potencialidades, novas formas de manifestação que importa considerar devidamente.
Se folhearmos, com todo o interesse que merece, o último número da revista «Hífen», publicado recentemente na Porto e dirigido por Inês Lourenço, deparamos com uma circunstância que poderá, talvez, ser entendida a partir de algo que já dissemos atrás. De que circunstância se trata? Este número da revista, como, aliás, acontecera com alguns anteriores, subordina-se a uma espécie de subtítulo «Os dias inúteis». Disse-se subtítulo e não tema, embora Inês Lourenço, num texto introdutório, nos fale da «procura de uma temática integrativa» para este número da «Hífen». No entanto, um tema tende a apresentar-se, em relação ao poema, como algo que lhe é exterior. Quando a poesia se inseria num contexto que andava muito perto de uma efectiva relação de comunicação - a poesia outrora dita nos serões, nos outeiros, etc. - estabelecia-se uma margem de encontro entre o poeta e o seu ouvinte. Havia o que poderia ser considerado como uma espécie de cumplicidade entre ambos, sujeitando-se a criação do primeiro a motivos, temas, motes, etc, propostos pelo segundo e que, inevitavelmente, orientavam a própria realização poética. A comunicação possível da poesia, neste caso, era uma subordinação a certas opções, gostos ou preferências que facilitavam ou antecipavam mesmo essa comunicação. Tudo isto foi posto em questão conforme se afirma a tendência para a poesia encontrar em si mesma a sua autonomia, em ir ao encontro da tal «obsessão da imanência»...
Como seria de esperar, esta obsessão foi encontrando outras obsessões ou, melhor, preocupações. Hoje não deixa de se admitir, no plano teórico, a importância de que se revestem na poesia certos aspectos referenciais - por exemplo, os que decorrem de um envolvimento cultural, o que já foi posto aqui em devido relevo - ou, no plano da criação propriamente dita, o interesse manifestado por muitos poetas que se voltam para um mundo que já não é o da própria poesia; é, antes, uma realidade que coincide com o quotidiano, o concreto, o vivido, o prosaico até.
Um facto como este é posto em relevo neste número da «Hífen», o qual, sintomaticamente, principia com alguns poemas de Irene Lisboa muito marcados, como diz Inês Lourenço, por um «envolvimento com o real». Consideremos alguns exemplos, tendo agora em vista outros colaboradores desta «Hífen». A procura fait divers. Ela está presente em afgumas poesias incluídas; mas, note-se, um fait divers que traz consigo aqueles poderes de transposição, de metamorfose que são próprios da poesia: «Um homem passeara-se nu pela cidade com uma rosa na mão. Inquiridas pelo juiz as testemunhas revelaram-se incapazes de identificar a cor da rosa» (Jorge de Sousa Braga). Outro exemplo: o modo como o encontro com o quotidiano pode ser sentimentalmente transposto de tal maneira que ele se insinua em nós e ganha, aí, uma realidade que se reveste de um sentido diferente: «Que diremos agora um ou outro? // É tarde. Ainda há um momento / me apetecia conversar, agora estou outra vez tão cansado! / Reparaste como o Outono, este ano, veio por outro lado, / como se fosse pelo lado de dentro?» (Manuel António Pina).
É a consciência de um terreno comum que se defina em torno duma referencialidade que é a que provém da consciência de uma realidade ambiguamente presente que dá ao conjunto de poemas que se encontram neste número 7 da «Hífen» uma configuração que seria a de unidade se não fosse também a de diversidade, pois qualquer referência temática demasiado forte acaba por se atenuar ou, mesmo, desaparecer em função de uma outra realidade que os poemas afinal ganham...

Hífen n.º 7, Cadernos Semestrais de Poesia, Abril 1992