04 agosto 1992

HÍFEN, HÍFEN


Cecília Barreira


A REVISTA HÍFEN TEM CUMPRIDO DESDE Outubro de 1987 um papel pioneiro no que respeita À poesia portuguesa. Mantendo desde essa data uma assiduidade que não é habitual em revistas estritamente poéticas, alia uma característica base com uma outra fundamental: é uma publicação de qualidade que se arroga o direito de não permitir um caminho de facilidade e leveza. Note-se que em 1987, no seu primeiro número, entre outros poetas já incluía Paulo Teixeira, que há pouco tempo se revelou como uma das vozes mais importantes da poesia portuguesa jovem. Depois há uma outra característica importante: a aliança entre a jovem poesia e a poesia da maturidade de grandes poetas nacionais e estrangeiros. De Jorge Luís Borges a Alain Bosquet, de Sylvia Plath a Ralf Thenior. Também de Eugénio de Andrade a Ramos Rosa, de Pedro Tamen a Sophia de Mello Breyner.
Uma atenção permanente ao que de melhor a poesia portuguesa vai oferecendo faz com que Inês Lourenço - a directora e principal entusiasta desta iniciativa - escolha para cada número um conjunto apreciável de poetas de inegável qualidade. Podemos gostar mais de um, podemos ainda menosprezar outro; mas a qualidade, essa, daqueles poemas em concreto ninguém põe em causa. E não é fácil, concordemos, possuir um sentido tão apurado de espírito crítico e percepcionar a qualidade com a capacidade de Inês Lourenço.
O número 5 de Hífen de Março de 1990 é todo ele dedicado à tradução de grandes poetas estrangeiros, pelos mais consagrados tradutores portugueses. José Bento traduziu Jorge Luís Borges, João Barrento traduziu Ulla Hahn, Luís Miguel Nava, Alian Morin, por exemplo.
E nem sequer na escolha dos poetas, nomeadamente os portugueses, existe a noção da capelinha literária, nem de disparidade geográfica. Sendo uma revista do Porto, inclui poetas de Norte a Sul, dos mais díspares e que somente na Hífen aparecem a par e par.
Mas detenhamo-nos neste número da Hífen: contém poemas de Irene Lisboa, com uma nota explicativa de Paula Morão e poemas de Alberto Pimenta, Amadeu Baptista, Armando Silva Carvalho, Egito Gonçalves, Eugénio de Andrade, Francisco José Viegas, Gil de Carvalho, Helga Moreira, João Camilo, Jorge Fazenda Lourenço, Jorge Figueira, Jorge de Sousa Braga, José Bento, José Emílio-Nélson, Manuel António Pina, Ildásio Tavares e ainda os poetas estrangeiros José António Ramos Sucre (tradução e notas de José Bento); Roberto Juarroz (tradução e notas de Arnaldo Saraiva); Christoph Meckel, Karin Klwus, Ralf Thenior e Rolf Dieter Brinkmann (tradução e notas de João Barrento), e Sarah Kisch (tradução e notas de Maria Teresa Dias Furtado). A temática integradora é nada mais nada menos que esses «Dias Inúteis», a poesia do quotidiano, aparentemente minimal, como nos refere Inês Lourenço na nota introdutória, mas que contém em si o gérmen da inquietação humana.
Em Irene Lisboa encontramos aqueles traços do quotidiano que já descortinámos no livro de poesia publicado pela mão de Paula Morão. É uma poesia que se embrenha no quotidiano, reconhecendo-se nele: «Não sei nem sou, não me reconheço… / Nunca ninguém, sequer, me deteve, me falou, me interrogou. / Sou uma sombra, ou menos.»
Queremos aqui referir, também, algumas vozes de grande qualidade e que nem sempre têm sido reconhecidas como tal. Referimo-nos a Helga Moreira, talvez uma das vozes poéticas mais importantes da actualidade - não que tivesse publicado muitos livros, mas não é pela quantidade que se afere a qualidade - e a que a Hífen sempre prestou atenção. Note-se, por exemplo: «De não haver um dia de continuada luminosidade e abandono/ do interior se desdobra e, de novo, a desolação: / Negras imagens em orbitais flúem em dia frio / e, por fora, a planura jubilosa de primavera correndo / como se, defronte, pudesse ver o mar. / Por um dia. Por um só, eu pudesse olhar para fora.»
Mas, retirando os consagrados, é de referir elogiosamente a poesia de Francisco José Viegas, de João Camilo, de Amadeu Baptista.
Uma questão que se pode pôr à consideração é porque não se apoiam iniciativas como esta. Oficial ou privadamente. Porque a Hífen é um espaço de liberdade e criatividade poéticas de inegável qualidade e não bastam os elogios nos jornais para que uma revista sobreviva. Quantas revistas não ficaram pelo primeiro ou segundo números, quantas publicações não ficaram efémeras porque não transpuseram a barreira da labuta árdua das leis do marketing? E contudo a poesia não deveria ser encarada à luz dos números, como se de uma vulgar mercadoria se tratasse.
Para quando uma política oficial de se encarar as revistas de qualidade literária, como património a preservar?
JL, Terça-feira, 4 de Agosto de 1992